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Vamos falar de gordofobia durante a gestação

Depoimento “Eu, Mãe”.
Rachel Patricio: 32 anos, empresária e mãe de um menino de 14 anos, um de 10 e grávida do terceiro bebê.

Eu tinha planos de falar sobre gravidez e gordofobia durante essa gestação, mas em algum momento essa vontade sumiu. Parte deve ter sido autopreservação, parte foi aquele cansaço que as vezes chega. Minha gestação é considerada de alto risco, ainda que meu obstetra me olhe toda consulta e diga “você está ótima, não tenho nada a te dizer”. É a tal patologização do corpo gordo. Esse é o meu único “sintoma”. Estou com 31 semanas, em breve o bebê chega. Durante esse tempo, acompanhei também a gestação da Tess Holiday, modelo gorda que atua no mercado plus size americano.

No dia 06/06 nasceu o Bowie, filho da Tess. E olha, eu me emocionei. Eu li os ataques que ela sofreu em cada foto que ela postava, pois é impossível para algumas pessoas aceitar que o corpo gordo é capaz de gerar uma vida. Chamam de apologia à obesidade. Vejam bem: eu e Tess, mulheres gordas, gerando vidas, somos vistas como um grande mal dentro da nossa sociedade.

Essa é a minha terceira gestação. Na primeira, que aconteceu há 14 anos, eu sofri muita violência obstétrica. Eram maus tratos por ser muito jovem e por ter engordado 30 kilos na gestação. O parto, uma cesárea, foi muito ruim. Logo depois, tive minha segunda gestação e foi mais tranquilo. O acompanhamento de todas elas foi feito no SUS e todas as gestações foram muito distintas.
Na primeira, eu não era gorda. Na segunda e na terceira sim. Eu percebo que junto com todas as outras pequenas violências que a gente sofre numa consulta, como mal olharem pra gente ou não saber quem somos, noto que os médicos partem do pressuposto de que eu estou doente. Mesmo que eu não tenha nada. E, desde o início, esse é o ponto chave dessa gestação.

Claro que eu faço o exames, mas quando o médico pediu a minha primeira curva glicêmica pra ver se eu estava com diabete gestacional, ele me entregou o pedido médico e disse: “eu sei que vai dar positivo”. E não deu. Estava ótimo, nem perto de uma diabete gestacional. Além disso, ele fica acompanhando o peso –“nossa, não engordou, né?” –, a pressão arterial, me diz que eu preciso aferir com frequência para ver se não há hipertensão.

“Mas você nunca teve pressão alta? Nunca tive. Ah, tá.
Mas você tem feito exercícios? Ah, eu caminho. Ah, tá.
Mas e a sua alimentação? A minha alimentação é muito boa.”

Esse comportamento é partir do pressuposto de que eu fico o dia inteiro sentada comendo salgadinho e que a minha saúde vai estar uma porcaria por causa disso.

Quando eu engravidei, percebi uma grande preocupação de algumas pessoas que me cercam. Num primeiro momento vi reações do tipo “COMO ASSIM GRÁVIDA???”. Achei que eram por conta do meu filho mais novo ter 10 anos (e algumas reações de fato eram por conta disso). Até que veio o primeiro comentário do tipo “nossa, meu médico me mandou perder peso pra engravidar”.

Na minha primeira consulta com a obstetra do posto de saúde ouvi um “mas você tem certeza que está grávida?”. Falei que tinha feito exame de sangue e ela pediu um ultrassom. “Para confirmar”. Na segunda consulta, depois de ter visto a ultrassonografia, ela me pediu os exames de sangue. E me recomendou a suplementação vitamínica. Na terceira consulta, com os meus exames em mãos (todos ótimos), ela pediu pra me examinar. Deitei na maca, ela olhou para minha barriga e alguma coisa aconteceu ali. Ela não me mediu nem me apalpou. Pediu pra que eu descesse em seguida e fez um encaminhamento pra um centro de atendimento aqui da cidade. Anotou no encaminhamento “gestação de alto risco: obesidade”. Alguns dias depois fui atendida pelo obstetra que me atende agora. Ele claramente não via razão para eu estar ali. Disse que estava tudo ok comigo e eu fiquei mais tranquila.

Foi na consulta da 22ª semana que a gordofobia aconteceu, quando o médico me disse que tinha certeza de que teria diabete gestacional. Foi nesse dia que eu percebi que ele de fato não me conhecia. Que o sistema de saúde é puramente sobre números e não sobre indivíduos. A minha percepção é que meu médico não sabe quem eu sou. Quando ele atende, ele atende, pelo menos, mais umas 20 grávidas. Ele não vai lembrar quem sou. Além de ter outras pacientes, em outros dias, ele é professor e diretor de cirurgia fetal. Quem eu sou pra ele? Eu não existo. Eu sou um número, um prontuário. Ele não faz a menor ideia de que eu sou formada em nutrição, não tem a menor ideia como é a minha alimentação. Ele só vê um corpo gordo na frente dele. Então, ele parte do que ele estudou e a medicina fala que existe uma prevalência de 5% a mais de chance de uma paciente obesa desenvolver diabetes gestacional. Ele me joga nesses 5% sem ao menos saber quem eu sou, saber meu histórico.

Eu tenho consciência do motivo pelo qual ele está fazendo isso. Mas, eu também sei, que alguma outra mulher que seja contadora, economista, jornalista ou dona de casa que não tem nenhuma familiaridade de como funcionam essas pesquisas ou como funciona o meio médico, vai achar que o problema é ela. Ela nunca vai achar que é um problema do sistema de saúde que a gente vive, da forma como se vive a saúde no Brasil. Ela vai achar que a culpa é dela e é isso que me faz ficar muito brava. Isso me faz querer falar para as pessoas que o problema não é ela. O problema é todo o sistema. Essa postura é um desrespeito isso com a mulher. E, talvez, cinco minutos a mais de conversa resolveriam várias questões.

Uma coisa que me preocupa é o despreparo dos médicos com o meu corpo. Meus outros dois partos foram cesáreas e nesse, que também vai ser cesárea, eu vou fazer laqueadura. Eu fico preocupada se os médicos vão saber cortar uma pessoa que tem uma barriga com gordura. Vão saber dar ponto direito? Vão saber lidar com isso? Eu fico muito preocupada com essas questões. E também fico preocupada com as questões práticas como se vai ter um avental que me sirva ou uma cama em que eu caiba corretamente. Tem muito hospital que não está preparado para uma pessoa do meu tamanho. Isso é uma coisa que me preocupa profundamente. É uma forma de ser invisível. É a forma como eles dizem: “nossa, a gente nem esperava que uma pessoa do seu tamanho ficasse grávida.”

Eu vejo a nossa dignidade ser negada dentro do hospital desde o momento em que negam informações para gente e simplesmente vão fazendo os procedimentos sem nos explicar o que está acontecendo até esses detalhes de não ter um avental que te sirva, não ter uma maca. Na hora em que a gente tem que passar da maca pra cama, principalmente no pós parto, eu vejo a cara dos enfermeiros de “puta merda, eu vou ter que levantar essa mulher” e quando isso acontece, eu acabo me esforçando para fazer mais do que eu poderia fazer. Eu acabo fazendo força, acabo ajudando como eles falam. Isso é despreparo. É não estar preparado para um paciente que desviante daquilo que eles estão acostumados e isso gera um desconforto. A gente se sente incomodando quando deveria estar sendo amparada, acolhida. Num momento de fragilidade, isso é muito ruim. É muito ruim. Qualquer comentário negativo que aconteça nesse momento vai ser muito difícil.

Quando eu tive meu segundo filho, a enfermeira me usava como referencial. Falava pras outras mulheres “olha, a paciente do outro quarto é imensa e já está de pé, já tomou banho, deu banho no filho, já deu de mamar. Anda, levanta daí”. Era bem horrível. As pessoas precisam lembrar que ali não é só um prontuário, um número. É uma pessoa. São nesses momentos que eu me sinto invisível dentro do sistema de saúde.

No cotidiano, eu vejo essa invisibilidade de outras formas. Dia desses, eu entrei numa fila preferencial e quase me expulsaram porque eu não estou grávida, eu estou gorda. Eu tive que dizer que estou grávida, que tinha o direito de estar nessa fila e, é claro, recebi aqueles olhares. Transporte público eu nem cito porque é humilhante mesmo. As pessoas tem empurram. Elas sentem raiva por você estar grávida. É um absurdo. Essas 31 semanas de gestação foram tranquilas. O único problema que tive não tem absolutamente nada a ver com o meu tamanho. Minha pressão segue boa, meu ganho de peso até agora foram 3,5kgs. Não apresentei diabetes gestacional e recebi um elogio muito engraçado numa das ultrassonografias: minha médica disse que minha circulação é muito boa (ela estava checando as veias e artérias uterinas).

E não adianta: por mais que eu seja muito lúcida em relação ao meu corpo e à tudo isso, ver a Tess parir bem é uma vitória minha também. É um lembrete que tudo vai ficar bem, ainda que diariamente tentem me dizer o contrário.

Gravidez não é doença, eu ouvi desde pequena.
Ser gorda também não.

> Toda semana depoimentos reais sobre a relação das mulheres com a maternidade.