19/07/2016
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Eu Mãe/
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Eu,mãe: Fabrina Martinez, 37 anos, diretora de conteúdo e mãe de uma menina de 9 anos
Lembro que quando saí do banheiro e passei pelo corredor do jornal, eu não suportava mais. Já tinha passado pelo oitavo mês e há muito tempo estava na eternidade, à espera do parto. Era o dia 30 de maio de 2007, há exatamente nove anos atrás. A barriga era enorme e aquela dor era nova. Liguei para minha obstetra e ela me disse o que, naquela época, foi difícil repetir em voz alta. Eu estava em trabalho de parto. Fui no consultório dela e, na recepção, me tornei o centro da atenção de todas as gestantes.
Um centímetro de dilatação. Ela me pediu para ir para casa e esperar. Voltei para a redação, reuni todos os meus amigos e colegas de trabalho, passei os trabalhos e fui para casa. No dia seguinte, minha filha nasceu. Quando fui para a maternidade, o sol da manhã estava forte. Mas aquele inverno foi muito frio.
Amanhã minha filha completa nove anos. Isso faz com que eu esteja às voltas da maternidade há pouco mais de uma década. Toda minha gravidez foi cercada de medo e dúvida. Nunca carreguei o estereótipo da mulher maternal. Nunca me vi mãe, nunca tive essa vontade. Mas um dia, engravidar me pareceu coerente. A vida era aquilo, não era? Nascer, crescer, casar, ter um filho, pagar um financiamento da casa própria, envelhecer e morrer? Eu achava que era. E achava que estava no ponto de ter o filho. Mas as coisas saíram tortas. Como qualquer história, como qualquer maternidade. Os nove meses de espera dariam uma boa história mas a minha morte e vida são melhores.
Quando saímos do hospital, eu estava em qualquer outro lugar, menos ali, com ela. Eu tinha pessoas perto e isso amenizava o fato de que eu não tinha a menor ideia do que fazer. Então as pessoas se foram e começaram os quatro meses mais estranhos que vivi até hoje. Éramos eu e ela, sozinhas, todos os dias. O dia todo. A rotina era sempre a mesma. Tão igual e automática que consigo condensar todas elas numa única cena. Lembro do silêncio em que vivíamos. Só cortado pelo choro de fome ou de cólica. Ela nunca dormia. Nunca. Nem de dia, nem de noite. O pediatra disse que era normal. Eu sentia sono. Um sono tão profundo que ele me atravessava. Lembro de um dia, em que a exaustão era tão grande que eu fiquei ali, parada. Ela começou a chorar e eu, em silêncio, me perguntava o motivo de ter tido uma filha se não era capaz de cuidar dela. Na televisão, um episódio de CSI Miami sobre uma mãe exausta que mata a família.
Precisamos falar sobre isso?
Eu questionava aquele começo em que as exigências são tão poderosas. Não tenho pudores em falar das dificuldades da maternidade. Isso me dá a liberdade de dizer que a maternidade me salvou. De mim. Eu não sou a mãe que eu me forcei a ser e que, por tanto tempo, fez de mim uma mulher infeliz e frustrada.
Nunca tive paciência com as coisas que me pareciam ser de crianças. Coisas simples como conversar, sentar no chão e brincar com jogos me pareciam distantes. Eu estava certa. Mas (sempre tem um mas) tenho paciência, vontade e paixão para me sentar ao lado dela na cama e ler. Foi assim que, em pouco mais de um ano, lemos todos os livros de Harry Potter. Agora estamos no décimo volume de Desventuras em Série. Nossos planos incluem terminar o 13º volume antes que a série estreie na Netflix. Mas confesso que estamos lentas nesse ponto.
Eu sou uma mãe de aventuras. Juntas fomos conhecer o mar, encontramos a Mônica e o Maurício de Souza, fizemos cosplay, assistimos Caça Fantasmas e esperamos pelo novo, alugamos uma casa numa praia particular e cuidamos dos nossos cachorros. Recebo as amigas dela em casa e levo pro sebo, pro cinema e pra pista de skate. Temos algumas outras aventuras planejadas. Eu sou aquela mãe que sempre queima o almoço. Ou o jantar. Em alguns dias, duas vezes. A mesma refeição. Já aconteceu. E rimos disso até hoje. Minha falta de jeito na cozinha é tão popular em casa que ao planejar sua festa, no próximo fim de semana, ela pediu algo com comida simples pois “a gente sabe que você não dá conta, mãe”. Não dou. E não me forço mais. Parei de me punir por não conseguir fazer o bolo, os biscoitos ou o arroz que ela gosta. Peço comida, tento de novo, corremos pra minha mãe e rimos juntas das minhas tentativas. Eu me perdoei por não ser prendada na cozinha.
A maternidade me ensinou que eu podia viver a vida que desejei. Que genuinamente desejei. Mesmo que não saiba exatamente como ela deve ser. Eu, que sou tão obsessiva com algumas coisas, consegui abraçar a incerteza da maternidade sem sofrimentos. Mas precisei de nove anos para isso. Para entender que tudo bem ela dormir essa noite na minha mãe para que eu faça uma viagem a trabalho. Que isso não me torna menos mãe e nem a torna menos filha. E que dentro da nossa dinâmica, essa ausência seja parte essencial da família que formamos. Mas eu só entendi essas coisas quando, pelos olhos da minha filha, aprendi a me amar.
Eu tinha planos. Eu queria ver a bolsa estourar, queria um parto natural na piscina, em casa e comandado pela minha vó, além de toda tranquilidade de uma licença maternidade cor de rosa. O que aconteceu foi uma morte seguida por um longo luto e uma ressurreição. Eu senti quando a médica a tirou de dentro de mim, numa cesárea muito questionável. Não senti minha bolsa estourar, nem tive contrações. Mas eu me lembro do momento em que a médica olhou para mim, sobre o lençol na sala cirúrgica, e disse que uma menina linda e saudável havia nascido. Minha filha chorou. Eu também. Foi assim que nascemos. Mas eu precisei de anos de gestação.
Quando meu primeiro exame de gravidez apontou positivo, eu morri. Ele trouxe à tona uma dúvida enorme: nós nos amaríamos? Eu sabia que eu podia sentir uma coisa legal por ela como eu sentia por qualquer outra pessoa na minha vida. Mas eu seria capaz de amar? Nunca fui muito capaz de cuidar de mim do jeito que eu merecia. Nunca soube me amar profundamente porque acreditei que o amor vinha sempre de uma fonte externa. Aceitava qualquer demonstração de amor, de afeto ou de carinho como quem recebe um favor. Nunca me vi digna de ser amada. Eu tinha certeza de que não era digna.
Quando peguei o segundo exame positivo na mão, comecei a ligar para as pessoas e dizer: estou grávida. Eles entenderam como uma notícia. Era um pedido de socorro. Como eu daria àquela pessoa o que não sabia se tinha? Eu vivia das minhas migalhas. Dava aos outros tudo o que tinha na expectativa de receber um qualquer afeto de volta. E, quando minha filha chegou, algo em mim morreu. Eu não entendia o que estava prestes a acontecer. Só sabia que precisava viver. E cuidar. Foi quando comecei a me gestar.
No começo, eu sabia que o olhar dela, a preferencia dela por mim era por sobrevivência. Os três primeiros anos dela foram de negação a esse luto. O que eu era antes não me servia mais e, no entanto, o que diziam que uma mãe deveria ser, também não. As dúvidas eram tão grandiosas que eu sequer me permitia pensar nelas. O “e se” era doloroso demais. Eu tinha que ser a mãe que eu imaginava como ideal. Tinha que estar ali pra ela, esperando pra quando ela precisasse e aparecesse e decidisse. Eu não aceitava essa transição. Eu sentia falta da minha calça jeans que, para não pagar excesso de bagagem, ficou em alguma das casas onde morei. Eu sabia que havia algo errado e, ainda hoje, não sei nomear o que era. Mas eu senti tudo aquilo e entendi. Por anos, vivi na insegurança e no medo. Duas correntes pesadas que me impediam de andar.
Num daqueles dias em que tudo dá errado, em que o feijão queima, a gente perde o ônibus e o trabalho é recusado, eu desabei. Sentia tanta coisa ruim por ser aquela pessoa incompetente que resolvi me entregar. E, envelhecida e envergonhada, sem muito pensar, perguntei se ela me amava.
“Claro, mãe. Porque eu não amaria?”
Por quê?
Ela sequer se deu ao trabalho de me olhar, mas a resposta dela me libertou de mim. Daquela prisão que eu havia criado. Quando a minha filha levantou a cabeça e me olhou, eu já não era a mesma pessoa. E ali, refletida nos olhos dela, eu renasci. E pude, pela primeira vez, considerar a possibilidade de me perdoar. De rasgar o papel de parede amarelo da maternidade e viver.
A gente acha que o amor chega e coloca tudo em ordem ou que a paixão vem e destrói. Temos uma série de teorias sobre o que acontece quando esses sentimentos chegam de maneira externa. Mas a gente raramente aprende ou fala sobre o que acontece quando aprende a se amar. No meu caso, e só falo por mim, foi um baque violento. Eu mal tinha entrado na casa dos trinta anos e havia desistido de mim. Eu estava disposta a aceitar aquilo até o dia em que me vi refletida no sorriso da minha filha.
Parece estranho colocar isso aqui, e de fato é, mas eu nunca me senti bonita. Lembro de, em alguns momentos muitos pontuais da minha vida, pegar uma ou outra foto e pensar que ali, naquele momento, eu estava. Não era.
Mas de tanto ouvir que ela é linda e que se parece tanto comigo, eu comecei a me questionar. E seu eu fosse bonita? E se eu me sentisse bonita? E se eu me permitisse me apaixonar por mim e me dedicar a mim como eu vinha fazendo com as outras pessoas?
Parece simples e óbvio, mas quando me percebi genuinamente amada por ela, não soube lidar com isso. A maternidade foi uma morte súbita. Mas seu luto foi lento e doloroso. Foram necessários anos para entender que eu podia me dar direitos.
Pelos olhos da minha filha, eu me vi como uma pessoa. Digna de ser amada.
Aprendi que o problema não estava nas pessoas e na forma como elas me tratavam. Estava em mim. Em achar que o mundo me devia amor, que me reconheceria, que me amaria do jeito que eu queria ou precisava. Foi quando aprendi com o mestre Balboa que ninguém me devia nada. Mas eu devia a mim mesma. E resolvi me pagar.
Amanhã a minha filha fará nove anos. E eu caminho pro primeiro. O inverno deste ano foi quente, mas o outono tem chuva e neblina e temperaturas frias. Mas muita coisa mudou. Nós somos uma família. Aqui em casa o arroz não é soltinho, não temos margarina e ninguém acorda feliz e cantando. Mas, na nossa realidade, a construção é diária. Lembro que quando descobri que estava grávida de uma menina, uma pessoa que trabalhava comigo perguntou o que “uma gorda que gosta de boxe vai ensinar pra ela”. Na época, eu disse que ensinaria justamente isso. A lutar boxe. O tempo passou e, durante muito tempo, eu achei que isso não aconteceria. Mães ideais não fazem isso. O tempo passou. Ensinei muitas coisas à minha filha e ela me ensinou tantas outras. Logo mais começam nossas aulas de muay thai. Esse é um dos nossos planos a curto prazo. Ela está ansiosa por isso.
Estou feliz por ser a pessoa que desejo ser. Por ser eu,mãe.
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