FIlhos
Solana Baptista
Eu aprendi a me amar para amar a minha filha

Depoimento “Eu, Mãe”.
Solana Baptista: 33 anos, terapeuta ayurvédica, mãe de uma menina de sete meses

“Éramos eu, minha amiga doula, a parteira que aceitou fazer o meu parto depois de doze anos e uma grande amiga. Um ambiente feminino. Foi uma corrente bonita. Eu fiz uma playlist, preparei o quarto, tinha uma banheira que minha amiga doula emprestou. Um ambiente muito gostoso. Foi emocionante para todas nós.

E o nascimento da minha filha foi exatamente do jeito que eu queria. Eu tratei tudo com ervas medicinais, tomando chás, fazendo compressas. Minha filha nasceu quando eu estava abraçada na bola de pilates, bem confortável.

Quando eu entrei em trabalho de parto eu não quis compartilhar com ninguém. Nem minha mãe nem ninguém da minha família, porque quando eu falei que minha filha nasceria em casa as pessoas ficaram assustadas, foram contra e eu achei que essa energia poderia prejudicar aquele momento. Minha mãe ficou um pouco chateada, mas depois ela entendeu.

Minha avó teve doze filhos e dez deles nasceram em casa. Tanto a doula quanto a parteira tiveram filhos em casa, apenas com a companhia dos seus maridos. Essas histórias vieram muito fortes pra mim e me inspiraram. A dor foi animalesca. Mas deu tudo certo. Foi lindo.

Meu companheiro estava presente, mas ele participou pouco. A energia era mais feminina mesmo.

Antes mesmo de eu engravidar eu já pensava que eu queria poupar o meu futuro filho das dificuldades que eu passei na vida. Eu quero proporcionar a ela o meu melhor. Ela vai ter que enfrentar as dificuldades que vão aparecer pra ela, mas eu quero estar do lado dela, dando suporte no que for necessário. Eu quero sempre mostrar o caminho, e a escolha vai ser dela. Ela vai ter livre arbítrio. Eu espero que ela aprenda com os ensinamentos que eu vou passar pra ela.

E eu quero ser muito presente, dar a ela o que eu não tive.

Eu morei em Londres por muitos anos. E passei por momentos muito difíceis lá. Eu tinha uma tristeza dentro de mim e eu já estava me acostumando com ela. É uma coisa que eu tinha mal resolvida em relação à minha mãe. Eu fui pra Londres para tentar fugir dessa dor, mas não adiantava porque ela continuava dentro de mim, não tinha pra onde fugir. Mas aquilo foi virando uma bola de neve e eu tinha que resolver, e por isso eu resolvi buscar a ajuda de terapeutas, que me diagnosticaram com depressão.

A minha mãe foi mãe solteira. Eu sou filha de uma aventura. Eu sentia falta dela, da atenção dela, do carinho, da preocupação. Ela não era muito presente, ela não me ouvia, não perguntava como eu estava. Eu não sabia se isso era dela ou se era normal nos adultos. E isso me fazia triste porque eu também não tinha o meu pai. E eu percebo que em muitos casais se um é assim o outro compensa. Eu conheci meu pai, mas não foi uma presença marcante. Eu recorria pra ela nas dificuldades que eu tinha na vida e não recebia muito apoio, principalmente depois que eu cheguei na adolescência e eu queria reconhecimento. Com o tempo eu entendi que ela também não recebeu isso, então nem ela sabia o que ela estava fazendo. E isso me afetou.

Em Londres, eu fiz um tratamento com acupuntura e eu conheci mais a fundo a medicina ayurvédica, uma medicina milenar, indiana, que no Brasil é tratada como terapia. E isso me despertou a vontade de voltar para o Brasil, me despertou muitas coisas na verdade. Parar de me fazer de vítima, perdoar a minha mãe. Ela não tinha culpa. Era a situação. E por eu ter recebido ajuda dessa forma de tratamento eu comecei a pesquisar sobre terapias.

Voltei pro Brasil e fui morar no Rio de Janeiro. Fiz dois cursos mas no meio do segundo eu decidi sair da cidade porque eu não me adaptei. Fui morar em Resende. Era próxima do Rio e eu consegui terminar o curso. Foi ótimo. Quando eu terminei o curso eu tive dificuldade em conseguir emprego. O dinheiro que eu tinha juntado em Londres foi gasto para fazer os dois cursos, que não eram baratos. Fui pra Visconde de Mauá, e lá eu consegui trabalhar.

Eu quis fazer essa mudança para fugir do padrão da cidade e a primeira coisa que eu almejei foi ser autônoma. Sem chefe, sem ninguém me controlando. Ter vindo pra cá me ajudou muito, me abriu muitas portas para trabalhar como terapeuta ayurvédica. E eu queria morar em meio a natureza, com qualidade de vida. Podendo tomar um banho de cachoeira nas horas vagas. Respirar ar puro e tomar água direto da nascente. Depois que vim morar em Visconde de Mauá, percebi que sair da vida urbana ia além do desapego, pois o ritmo urbano está o tempo todo nos proporcionando um certo conforto, mas ao mesmo tempo excesso de estímulos.

Escolhi ter uma vida simples. Sem carro, sem televisão, pouco uso de internet. Dando mais atenção para minha alimentação e bem estar. Logo que cheguei aqui na montanha, atuei como massagista ayurvédica em um hotel. No início achei que aquilo me preenchia. Mas durou pouco, pois sabia que tinha potencial para trabalhar como terapeuta ayurvédica.

Mesmo atendendo turistas, que só estavam buscando relaxamento, eu dava um jeitinho de introduzir o Ayurveda, falando sobre seus benefícios. E acabava passando orientação alimentar de acordo com o desequilíbrio da pessoa. Trocávamos e-mails e dava continuidade no atendimento.

Na temporada de verão de 2014, tive um desentendimento com a equipe do hotel, pois não estavam valorizando meu trabalho, deram preferência pro atendimento de outra massagista. Alegaram que meu trabalho usava muito óleo e sujava muito os lençóis.

Quando esses problemas começaram, era recente o relacionamento com meu companheiro.

Nós nos conhecemos dentro de um trabalho espiritual, vimos que tínhamos muitas coisas em comum. Então não tivemos dúvidas que ficaríamos juntos. Decidi sair do trabalho do hotel e fiquei sócia dele. Ele é artesão, trabalha com madeira e marchetaria em cipó. Entrei com trabalhos esotéricos e dei um toque feminino na loja.

Eu planejava o meu bebê para aquele ano. Eu sempre dizia que queria engravidar aos 33 anos, e quando eu joguei pro universo ele me trouxe ela já no fim daquele ano. Quando eu conheci meu companheiro eu tive certeza que ele ia ser o pai do meu filho, por toda a afinidade que a gente tem no lado espiritual. E tudo conspirou pra acontecer da forma que aconteceu.

Depois que eu engravidei nós fomos morar juntos. Morar onde eu moro é todos os dias um exercício constante de desapego. Eu almejava morar num lugar como esse e ter essa qualidade de vida natural, perto da cachoeira. Eu já cuidava da minha alimentação, e aqui foi pra complementar. É muito gostoso morar aqui. Onde a gente mora não é longe da vila, mas tudo o que a gente faz demanda tempo. A gente caminha mais, respira um ar melhor, exatamente o que eu estava buscando.

A distância da casa onde moramos até a loja é de seis quilômetros sendo uma parte bem íngreme. Caminhei até o sétimo mês de gravidez, todos os finais de semana. Sol, chuva, lá estava eu, firme e forte, com minha menina na barriga.

A casa onde moramos é alugada. Como a maioria das casas de aluguel daqui da região, ela precisava de um levante. Pintura, trocar telhado da varanda, uns ajustes no interior da casa. Enfim, eu e meu companheiro botamos a mão na massa.

Desde o início da gestação eu sabia que a minha filha nasceria de parto normal humanizado. Como foi uma escolha, eu me preparei para isso, cuidando muito bem da minha alimentação, fazia atividade física e conversava com outras mulheres para ouvir os relatos delas.

Mas até o quinto mês de gestação, não tinha decidido onde seria o parto. Eu sabia que era caro pagar uma equipe médica para ter um filho em casa. Então eu comecei a falar com as pessoas, que eu queria um parto o mais natural possível, comecei a ler livros, e as informações começaram a chegar. Muitas mulheres da região que eu moro tiveram seus filhos em casa. E um dia uma amiga me perguntou se eu sabia quem era a uma parteira em especial. Ela fez muitos partos na região mas tinha se mudado para outro lugar. Eu fiquei com isso na cabeça.

E também na gravidez eu reecontrei uma amiga que eu não via há muitos anos. Nos conhecemos na adolescência e ela se mudou para o Acre. E aí eu comentei que estava grávida e ela disse que estava fazendo um curso de doula. Ela ficou super empolgada. E ela se ofereceu pra ser a minha doula. Quando a gente se encontrou ela me contou que ela teve a primeira filha no Acre com uma parteira, e não foi uma boa experiência. E na segunda filha ela teve em casa, sozinha, só ela e o marido.

Eu achei aquilo incrível. Isso foi muito forte pra mim. Eu queria ser como ela.

Eu entreguei pro universo. Não fiquei estressada. E aí a  parteira voltou a morar perto de mim. Fiquei sabendo o dia em que ela estaria no posto de saúde mais perto da minha casa e fui falar com ela. A princípio ela ficou um pouco assustada, ela disse que fazia 12 anos que ela tinha parado de fazer partos.

É a mulher que faz o parto. Não os médicos. Eles implantam medo nas mulheres para a comodidade deles. Cesárea é mais prático e mais rápido pra eles. Ela se ofereceu para acompanhar a gestação mas não garantiu que ia fazer o parto. Eu sei que ela estava insegura. Mas eu fiquei muito confiante de que ela estaria presente no meu parto.

Eu fiz pré-natal em um posto de saúde com um clínico geral cubano. Ele era ótimo e quando eu disse que queria ter meu filho em casa e por isso precisava de um bom pré-natal ele fez todos os exames, prestou atenção ao fato de que eu não como carne, e estava tudo certo. Esse médico disse que minha saúde estava ótima e que eu estava liberada para ter minha filha em casa.

Tudo foi se encaixando perfeitamente. Eu estava tão confiante que eu disse para minha amiga que seria minha doula que se a parteira não pudesse estar presente poderia ser só a gente. Eu não queria nenhuma intervenção. Sem anestesia, sem corte.

A parteira foi vendo que eu estava muito segura da minha decisão e um dia ela pediu pra conhecer a minha doula. Uma gostou muito da outra e nesse dia eu disse que estava muito decidida e que mesmo que ela não estivesse presente eu faria isso. Eu não iria pro hospital.

Ela pediu pra conhecer a minha casa e aí eu acreditei que tudo ia acontecer. A minha doula mora longe, e ela tirou férias quando estava na previsão de nascimento da minha filha. Fizemos um chá de bênçãos maravilhoso. Eu não quis fazer chá de fralda, lá todo o cuidado é pra mãe. É a despedida da barriga. Tive massagens, escalda pés.

No último dia de férias da minha doula eu entrei em trabalho de parto. Começou à uma da manhã e minha filha nasceu às 15h20 da tarde.

O puerpério foi o mais forte de tudo. A dor de parto vem, dura aquelas horas e passa. Mas o pós parto foi muito delicado. Primeiro porque eu não recebi muito apoio. A sociedade, mesmo as mulheres, acham que aquilo tudo é normal e que a gente tem que enfrentar. Mas na verdade é o momento que a mulher mais precisa de ajuda. Todo mundo bajula a grávida mas estar presente no pós parto é muito mais importante. Qualquer ajuda é bem-vinda. A minha mãe e minha irmã ficaram comigo quatro dias e depois eu tive que lidar com tudo aquilo sozinha. A maior dificuldade era dar conta de tudo.

Na montanha é mais difícil cuidar e manter uma casa por causa da umidade. E a minha casa fica na beira do rio. Então eu tenho que dar o dobro de atenção para não mofar tudo. E no puerpério tudo o que eu queria era ser cuidada. Eu não queria preocupação com casa, eu não queria fazer comida. Eu só queria ficar com a minha filha. Meu companheiro ficou muito mexido com o parto. Quando ela nasceu ele estava lá. Ele viu o meu sofrimento. Eu gritei muito, foi exaustivo e ele viu a minha filha saindo. Pra ele foi como se ele tivesse me visto do avesso e ele ficou um tanto chocado por um tempo, distante. Ele me viu como um bicho. Ele estava feliz com a chegada dela, mas ele ficou distante e isso me machucou muito.

Pra ele pesou o lado financeiro. Até hoje é difícil encarar que a minha vida foi deixada de lado. Eu não tinha tempo de cortar as unhas, lavar o cabelo, escovar os dentes. A prioridade era o bem-estar dela. E isso vai cansando. Acordar de madrugada, amamentar. O cansaço me deixava atordoada. Hoje ele me ajuda mais.

Eu tenho uma vontade absurda de voltar a trabalhar. Eu gosto muito do que eu faço mas eu não consigo ler nem um livro. Eu estava me organizando pra voltar a trabalhar e pensei em ter alguma pessoa cuidar da minha filha enquanto eu atendo, mas é muito difícil. De uns tempos cá eu percebi que não dá pra voltar a trabalhar com isso agora. Estou em processo de aceitação de que tudo mudou. Mas eu posso trabalhar com outras coisas que eu gosto passando o máximo de momentos com ela. Eu acredito que três anos é o ideal para que eu fique o tempo todo com ela.

Onde eu vivo têm muitas feiras de produtores locais e eu estou pensando em vender coisas sem glúten. Eu posso preparar com ela em casa e vender com ela também.

Todas essas minhas experiências me despertaram uma grande vontade de ser doula, mas uma doula pós-parto. Proporcionar isso cuidado para as mulheres, massagem, até ficar com o bebê um pouco pra ela poder tomar um banho, preparar uma sopa. Eu acho isso fundamental. Da mesma forma que despertou quando eu estava com depressão trabalhar com terapias (porque quando você ajuda o outro você também está se curando), nessa experiência como mãe isso veio muito forte.

Vou esperar minha filha crescer um pouquinho e vou me dedicar a isso. Quero unir o meu conhecimento com ayurveda com esse lado dos cuidados com a mãe e o bebê. É difícil mas é maravilhoso ao mesmo tempo. E essa dificuldade é necessária para o nosso crescimento.

Eu me tornei uma outra mulher, me vejo muito mais forte e mais capaz de enfrentar qualquer dificuldade. É incrível essa transformação dentro da gente.

Lá ainda em Londres, quando eu comecei a tratar da minha depressão eu também comecei a cuidar da minha alimentação. Eu vi como era importante cuidar do meu ser. Antes disso eu não tinha amor pelo meu ser, eu usava bebida, cigarro e outras coisas que me prejudicavam. Era uma válvula de escape. Eu queria me esconder da dor. E quando eu fui me tratar eu percebi que eu era um ser divino e precisava levar amor pra dentro, deixar aflorar isso. E eu imediatamente me tornei vegetariana.

Uma das experiências que eu tive foi com o ayuasca. Ela me trouxe muitas revelações, foi uma experiência muito forte. Ali também me foi revelado o amor que a minha mãe sente por mim. É o jeito dela amar, que era um jeito limitado, consequência das coisas que ela passou na vida. A vida fez com que ela se tornasse uma pessoa mais dura, mais fria. Ela não tinha muito o que oferecer em carinho, em cuidado.

Eu comecei a ter mais facilidade de olhar pra dentro e ver que toda aquela dificuldade me fortalecia como mulher, como ser humano. Mesmo as dificuldades fazem a gente crescer. Momentos difíceis são precisos pra gente crescer, desenvolver força, adquirir mais leveza. Eu esclareci isso com a minha mãe. Eu abri o jogo com ela sobre tudo, mostrei o quão madura eu já estava diante dessas dificuldades.

Desde quando eu comecei a curar essas questões dentro de mim a relação com a minha mãe melhorou. A vida dela também passou por várias transformações. Uma vez ela me disse que ela não queria ter feito o que ela fez, que ela não tinha conhecimento. Então a minha filha fechou com chave de ouro, porque ela está muito mais próxima, presente, sempre pergunta, participa, a chegada dela nos uniu muito mais.

Se a nossa história era um karma, a gente conseguiu resolver nessa vida.”

> Toda semana depoimentos reais sobre a relação das mulheres com a maternidade.